Viajar com segurança, autonomia e conforto. Esse é o desejo de todas nós, não é mesmo? Mas muito além de um objetivo de viagem, esses são os três pilares da acessibilidade. Com base neles é que se estabelecem os critérios de turismo acessível para que destinos e estabelecimentos sejam considerados preparados para receber pessoas com deficiência.
No Brasil, 45,6 milhões de pessoas possuem algum tipo de deficiência, segundo dados do último Censo realizado pelo IBGE em 2010. Isso representa 24% da população brasileira. Em todo o mundo, estima-se que esse número chegue a 650 milhões de pessoas. Mas infelizmente essa grande parcela da população ainda não está representada nas imagens de cartões postais cheias de turistas. No Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência lembramos que compreender e adotar os conceitos de acessibilidade são fundamentais para garantir o acesso de todas as pessoas a quaisquer lugares em que elas desejem estar.
Liberdade
“Quando estou viajando eu me sinto independente. A minha limitação física não é um impeditivo para que eu tenha essa sensação de liberdade e de independência.” É assim que a consultora Suelen Almeida define sua paixão por viagens, que começou desde muito cedo, quando ainda bebê fazia longas viagens de carro pelo Brasil acompanhando os pais.
Formada em Administração e especialista em inclusão de pessoas com deficiência, Su, como é conhecida, tornou-se cadeirante há dez anos em razão de uma distrofia muscular. Ela nunca deixou de viajar e hoje presta consultoria sobre inclusão a pessoas e empresas, através de seu site Viaje com Acessibilidade.
Para Suelen, outra contribuição das viagens é o conhecimento proporcionado: o aprendizado diante do contato com o novo, com o inusitado, com outras culturas e formas de perceber o mundo. Viajar é, portanto, se colocar em movimento, tanto físico – mesmo que haja uma limitação -, quanto emocional.
Su comenta que os benefícios de viajar vão muito além do lazer. “Por muito tempo, viagem foi considerado um artigo de luxo, mas eu acredito que a gente vem numa crescente de desmistificar essa questão, justamente porque a viagem é antes de tudo uma questão de inclusão social. Conhecer lugares, tendo contato com as pessoas e permitindo que as pessoas tenham contato com você, com a sua realidade. A questão da não segregação é muito importante. A inclusão é você estar inserido e participando efetivamente do contexto”, define.
Mas ela não esconde a frustração de se deparar com lugares inacessíveis e critica a necessidade de estar sempre explicando e solicitando direitos básicos. “Estar nos lugares (os que eu escolher), poder ir e vir (quando eu quiser, inclusive), poder consumir, escolher com quem me relacionar, onde estudar, trabalhar, etc. faz parte do conceito de uma sociedade inclusiva e liberta de preconceitos e estereótipos”, ressalta.
Ir onde ninguém vai
A curiosidade e a necessidade de conhecer problemas maiores que os seus foram os principais motivadores para que Jéssica Paula saísse pelo mundo coletando histórias. Viajar apenas nas férias nunca fez muito sentido para ela, que queria de fato uma imersão em outras realidades. A mochileira de muletas já conheceu 34 países e várias regiões do Brasil.
Ainda na faculdade, Jéssica fez sua primeira viagem sozinha. Foi fotografar uma competição de jogos indígenas em Tocantins. Depois disso, não parou mais. “Eu prefiro a experiência de viajar sozinha. Às vezes, viajando em grupo eu encontrava dificuldade para que as pessoas fossem no meu ritmo de caminhada e isso me incomodava. Ou topavam fazer experiências que na época eu não podia fazer, como andar de bike. Achava que estava atrapalhando ou me sentia fora do ritmo. Mas, ao mesmo tempo, gosto de estar sozinha. A gente faz mais amizades quando viaja sozinha, conhece mais gente e a imersão na cultura é maior, já que estão apenas você e aquele destino completamente novo. Para os destinos mais desafiadores eu prefiro ir sozinha”, explica.
Essa vocação em vencer desafios levou Jéssica ao Leste Africano, onde percorreu Etiópia, Sudão, Sudão do Sul e Uganda para produzir o livro Estamos Aqui, em que conta histórias de vítimas de conflito na região. “Como eu tinha um TCC para fazer e precisava de uma boa desculpa para viajar, pensei em fazer algo que trouxesse um significado relevante para minha carreira e fosse quase que um pretexto para conhecer culturas novas”, lembra.
Ao buscar países africanos pouco mencionados na mídia, se deparou com o Sudão, que já na época trazia um alerta de destino não seguro (que segue até hoje segundo a Wikitravel). E foi esse alerta que a motivou. Hoje se dedica a palestras e ao Passaporte Acessível, onde conta como é ser uma mulher com deficiência viajando pelo mundo. “Para mostrar que é possível. Representatividade é importante e auxilia quem estiver com esse objetivo, em especial mulheres que tenham alguma deficiência ou que simplesmente não se encaixem nos padrões”, reforça.
Em seu próximo projeto, Jéssica e suas muletas desafiam os Sete Elementos da Natureza: água, terra, fogo, ar, areia, rocha e gelo. Jéssica vai mostrar suas aventuras praticando surf adaptado, andando de bicicleta adaptada, saltando de paraquedas, percorrendo as dunas dos Lençóis Maranhenses e escalando o Pão de Açúcar.
Autonomia
A turismóloga Mellina Reis não tinha o hábito de viajar sozinha até quase perder a visão. A cultura viajante é tradição na família, tanto que ela costuma dizer que herdou o gene viajante da mãe. Quando uma degeneração na retina começou a comprometer sua vista, ela precisou modificar a forma de viajar. Em 2008, com cerca de 80% da visão já comprometida, ela viajou sozinha pela Europa.
Em 2015, ao lado da fiel cão-guia Hilary, Mel fez sua primeira viagem sozinha após ter perdido totalmente a visão. Ela conta que ficou tensa e insegura, mas ao sair do hotel e explorar as ruas de Curitiba, voltou a se sentir confiante e independente. “Planejei essa minha primeira viagem porque queria ter certeza de que a Hilary tinha trazido minha independência de volta. E nada melhor do que sair da zona de conforto e ir para um local desconhecido em que nós duas precisaríamos estar em total conexão”, relembra.
Segundo ela, viajar traz muitos benefícios e estar sozinha é uma oportunidade de autoconhecimento, de superar medos, inseguranças e timidez, uma vez que é preciso lidar com todas as situações. “Conhecer lugares novos, sair e voltar para o hotel, fazer meus passeios, ir a restaurantes, e ver que a minha deficiência visual não me limita, é uma sensação de vitória”, analisa.
Mel conta que uma viagem é sentida de diversas formas e vai muito mais além de simplesmente apreciar paisagens. “A energia do lugar, a receptividade das pessoas, a culinária, a felicidade da Hilary. São tantas coisas e sensações! Além do autoconhecimento, da sensação de liberdade, de me sentir segura e feliz fazendo algo que gosto e do aprendizado de novas culturas”, ressalta.
Sobre os cuidados que precisa tomar ao viajar, ela conta que são os mesmos de viver em São Paulo, com a diferença de ter um pouco mais de atenção diante de um local desconhecido. Segundo Mel, a maioria dos lugares não têm acessibilidade. Justamente por isso ela acredita que sua presença ajuda a conscientizar os estabelecimentos de que existem turistas com deficiência e que eles precisam se preparar.
“O medo existe, mas ele é muito limitante nas nossas vidas e a gente não pode deixar que ele nos impeça de ser feliz e fazer as coisas que temos vontade. Dificuldades existem. Então, se você tem alguma deficiência, talvez seja o caso de se planejar mais para ir preparado para o que pode encontrar”, orienta. Mel mantém o blog 4 Patas pelo Mundo em que traz indicações de viagens.
Informações específicas
Encontrar informações detalhadas sobre a acessibilidade nos destinos é um dos grandes desafios enfrentados por pessoas com deficiência na hora de planejar uma viagem. Saber se as ruas são pavimentadas, se a estrutura de transporte urbano garante mobilidade para todos, se os serviços de hospedagem estão preparados para receber pessoas com diferentes necessidades, ou ainda se há guias capacitados para atendê-los são algumas das questões que compõem o chamado mapeamento de acessibilidade.
A jornalista Jéssica Paula explica que as pessoas precisam de informações específicas para avaliarem por si mesmas se o local está preparado para suas necessidades. “O que vem primeiro: as pessoas com deficiência ou as rampas? A gente tem que estar nos lugares e mostrar que existe sim a necessidade de acessibilidade. Se a gente não sair na rua, realmente vão achar que a gente não existe”, salienta.
Dicas de destinos
De acordo com a Open Doors Organization, o nicho de viagens acessíveis cresce 22% ao ano. Segundo um relatório da entidade, entre 2013 e 2015, mais de 26 milhões de turistas com necessidades especiais viajaram pelos Estados Unidos movimentando cerca de US$ 17,3 bilhões. Se o turismo é uma oportunidade de desenvolvimento socioeconômico, a questão da acessibilidade deve superar a simples imposição da lei e ser encarada também como uma oportunidade de negócios que atenda uma demanda latente da população.
A consultora Su Almeida conhece bem o estado de São Paulo e recentemente fez uma longa viagem de carro até a Bahia. Segundo ela, Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo possui boa acessibilidade, inclusive na praia. Além disso, no Parque Estadual da Serra do Mar foi implantada uma trilha acessível. Já no litoral sul do estado, a cidade de Bertioga conta com um projeto periódico de praia para todos. “Em uma das minhas visitas ao projeto, fiquei em uma pousada que disponibilizava uma cadeira anfíbia (que possibilita acesso ao mar à pessoas com restrição de mobilidade) aos hóspedes”, conta.
Fora do Brasil, ela viajou para Buenos Aires em 2012, onde vivenciou experiências negativas ao solicitar serviços de táxi que não auxiliaram no embarque e desembarque. Seu próximo projeto envolve uma road trip pelas demais regiões do Brasil. A ideia é unir o amor pela direção e o registro da situação de acessibilidade turística para compartilhar dicas com o público.
Para a jornalista Jéssica Paula, Paris e Londres se mostraram menos acessíveis do que imaginava, especialmente para usar o metrô. Ela conta que alguns países da África em que as cidades não possuem tantas edificações acabam trazendo mais facilidade para caminhar. Aqui no Brasil, ela chama a atenção para o fato de que a Avenida Paulista, em São Paulo, é considerada a avenida mais acessível da América do Sul. Jéssica lembra ainda que muitas praias no Brasil estão implementando estruturas de acessibilidade, como Porto de Galinhas, em Pernambuco, que possui bares e jangadas acessíveis.
A turismóloga Mel já visitou nove países e mais de 100 cidades brasileiras. Para ela, Foz do Iguaçu é um destino bem preparado e preocupado em atender bem as pessoas com deficiência. Já o Rio de Janeiro, mesmo tendo sido sede das Paralimpíadas de 2016, não apresenta estrutura urbana adequada para receber turistas com deficiência. Fora do Brasil, ela avalia que Espanha, Uruguai e os Parques de Orlando, nos Estados Unidos, estão bem preparados para o turismo acessível.
Guias
O Guia do Turismo Acessível, disponibilizado pelo Ministério do Turismo, é um aplicativo colaborativo que permite o cadastramento e a avaliação de acessibilidade dos empreendimentos e pontos turísticos em todo o país. Além disso, as anfitriãs da Sisterwave podem acessar dicas e orientações de como tornar sua hospedagem acessível para todos no próprio site do Ministério.
Também foi lançado recentemente o aplicativo TATU (Tecnologia Assistiva Aplicada ao Turismo), que permite que turistas com deficiência visual e auditiva possam conhecer atrativos turísticos de Alagoas com o auxílio de audiodescrição e de Libras. O projeto foi criado pela Universidade Federal de Alagoas, em parceria com o Ministério do Turismo.